Ente querido

Eu vi a multidão em círculo se espremendo na calçada. Havia tanta gente que o ajuntamento engrossado envolvia também a rua. Os carros buzinavam e o congestionamento crescia. Resolvi me aproximar. Pessoas saiam de dentro da aglomeração. Umas segurando as lágrimas dentro do rosto consternado. Outras traziam um choro alucinado, desorientado pela perda. Ao longe a sirene da ambulância. Me aproximei mais. Acho que era a primeira vez que resolvia parar e olhar uma tragédia asfáltica. Muita gente ia e vinha no interior do círculo humano. Hesitei. Talvez não devesse ver com tanta exclusividade. Mas pelo andar dos curiosos que me empurravam não havia volta. Eu já estava inserido ali. Eram camadas de pessoas curiosas. Cada uma sendo empurrada pela posterior e empurrando a anterior. Um mecanismo programado. Uma máquina de levar até o choro que se ouvia mais nítido a cada passo. Era um passo avante e logo um momento de espera e retidão já que a primeira fileira, mais próxima do núcleo trágico parava uma instante para observar. A sirene da ambulância soava muito próximo. Agora as paradas eram rápidas. Havia entre nós um receio de que os médicos censurassem a apreciação mórbida. Mais alguns passos e eu estaria diante da cena. Vi alguém no chão. Ouvi seu choro. Minha visão era recortada pelos movimentos dos curiosos das fileiras anteriores. Pensei que veria o pior. Chegava minha vez, mas chegavam também os médicos. O círculo se desfazia a contragosto da multidão. Eu precisei forçar a passagem para ver. Era minha última chance. Enfim, cheguei e chegaram também os médicos. E ficamos estáticos quando percebemos que todo alvoroço era feito por um jovem chorando sobre os pedaços do celular estatelado pelo chão. Não havia sangue, mas a reação era digna de perda de ente querido.

Foto: Ilustração

Rafael Alvarenga
Escritor e professor de Filosofia
ninhodeletras.blogspot.com.br

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