QUEM PENSA? Será que aqui é mesmo o inferno?!

Pedindo chuva nesses dias de calor recorri às boas lembranças desse líquido tão especial e recordei um banho de chuva cinematográfico pelas ruas do centro do Rio de Janeiro. Só não fez sucesso porque faltou Gene Kelly e claro, porque não foi filmado. Era tão jovem e caminhava com uma conhecida – minha memória não me permite tanto: não lembro o nome dela – em um daqueles dias quentes, muito quentes e como sempre acontecia no verão, no final da tarde caiu aquela chuva forte – sem raios – mas intensa e maravilhosa.

E ao contrário do que sempre fazia, não me escondi dela naquele dia. Pelo contrário, olhei para a jovem que me acompanhava, e numa cumplicidade nos perguntamos: por que não? Sorrimos e tomamos banho de chuva. Só me lembrava de coisa semelhante quando pequena, nas férias de verão e porque algumas vezes a chuva nos alcançava no caminho da praia para casa. Mas naquele dia foi diferente. Lapa, Rio de Janeiro, final de tarde de um dia de semana, de trabalho, onde deixamos quase sempre as coisas boas ficarem num plano secundário, pois temos presa para chegar em casa e proteger bolsas, sapatos. Não naquele dia. Não me incomodei em molhar a bolsa e o que tinha dentro dela, tirei os sapatos e chutava as poças d’água, quem sempre não quis ser um pouco Gene Kelly? Naquele dia, sem guarda-chuva eu dancei na chuva.

Por que razão iniciei este artigo contando essa passagem da minha vida? Não por causa do calor, ainda que desejar chuva não é má ideia, pois o calor é só consequência do que infelizmente fizemos e ainda fazemos com o nosso planeta. Na verdade, iniciei este artigo para tentar refletir um pouco sobre as causas que resultam neste calor tão insuportável dos últimos dias e a cada ano mais um pouco: a indiferença à vida. Não são poupados árvores, plantas ou animais nessa sanha do desenvolvimento, do poder, do dinheiro. Muito menos são as pessoas.

Vendo uma imagem que circulou exaustivamente pelas redes sociais essa semana, a de um ladrão da zona sul do Rio de Janeiro amarrado a um poste pelo pescoço como eram tratados os escravos percebi que a barbárie cometida contra os negros no passado desse país ainda é aprovada pelos “senhores e sinhás”. Muita gente achando que o “ladrão” teve o que mereceu. Outros incitando a violência como única alternativa para a falta de eficácia da segurança pública no país, e outros, ainda, rogando praga quando alguém se indigna com aquele absurdo soltando pérolas do tipo: “queria ver falar coitadinho se ele tivesse matado alguém da sua família”. Coisas de um tempo que a gente lia procurando interpretação à pena de talião. Ele roubou então merece ser espancado e amarrado a um poste. “Razoável” ouvi isso. Quase vomitei é claro, mas logo lembrei de tantos moradores de rua, índios, gays e prostitutas que têm seus corpos queimados por rapazes de “famílias distintas” também pelas ruas desse país e percebi que o dente por dente, olho por olho é só um aperitivo para esta sociedade que julga levando em consideração não o crime, mas quem o cometeu.

Como comparar um ladrãozinho da zona sul do Rio com um estudante de curso superior, filho de executivo que resolve dar umas porradas no moleque, na namorada ou até mesmo no professor? Ou quem sabe é até razoável colocar fogo nos moradores de rua que dormem e acordam com os xingamentos e o corpo em brasa graças a diversão de três ou quatro rapazes com carros, bebidas e em casa uma família que muito provavelmente vai ter condições de pagar um advogado para falar como foi até “razoável” a ação dos “meninos”.

As leis passam ao largo quando se tem predisposição para condenar, mas insisto é uma condenação, na maioria das vezes, sócio-econômica, na verdade uma pré-condenação. Se furtou ou roubou que seja preso e a lei aplicada, não se trata de ter pena, chamar de coitadinho ou pior ainda, usar de escárnio para falar que direitos humanos é só para bandidos. É também para bandidos. Poderíamos ter menos violência se nos preocupássemos mais com os direitos humanos; poderíamos ter menos policiais mortos em enfrentamento com bandidos se não apoiássemos o cacete e o extermínio dos “bandidos” e valorizássemos mais os direitos humanos.

Esse desprezo pelo outro, pela sombra, pelo canto de um pássaro se acumulam e nos dão resultados assustadores. Há um regozijo com a humilhação do outro; um prazer que fazem olhos brilharem com o volume de dinheiro que uma área desmatada pode proporcionar; há uma insensibilidade com o que é importante para o meio ambiente e para as pessoas neste ambiente, tão impressionante que estamos nos transformando num desses personagens de filmes futuristas, onde você apenas levanta os olhos ao ver alguém sendo assassinado e volta a comer seu prato de comida numa naturalidade cotidiana.

Infeliz do homem que perde sua capacidade de indignar-se. Rui Barbosa disse: “De tanto ver triunfar a maldade, de tanto ver crescer as injustiças, de tanto ver agigantar-se o poder nas mãos dos homens, o homem chega desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e ter vergonha de ser honesto”. É por aí para pior.

Não quero suportar injustiças, não quero suportar barbáries, não quero e não vou conviver com isto como se fosse normalidade. Posso me indignar e falar quais os motivos da minha indignação. Posso agir ao invés de apenas lamentar o calor ou debater a violência que está entre nós. O inferno realmente parece que é aqui. Essa terra de tantas maravilhas naturais, já nem tantas assim, pode ser  mesmo o inferno, tem duas características inerentes, não?

Sei que é mais fácil a chuva cair e aplacar esse calor do que as pessoas mudarem de opinião e buscarem as causas do calor evitando os cortes de árvores, se mobilizando para evitar a derrubada e pedindo um plano de urbanização verde, que nada, o desconto na compra do carro é a prioridade. Da mesma maneira, buscar a causa da violência e perceber a cultura que estamos mergulhados que só contribui para aumentá-la. Que nada, melhor é usar clichês para definir os bandidinhos, afinal a grande a maioria é mesmo pobre e negra. A sim, não somos um país racista… sei.

O banho de chuva? Passou.

Ana Lúcia
Editora do jornal BEIRA-RIO
analucia@jornalbeirario.com.br

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