QUEM PENSA? Mulher cala a boca! Ué? A ditadura não acabou?

Nessa semana, no dia 31 de março, foram relembrados – sim, porque isso não é motivo para celebrar e nem comemorar, apenas relembrar com pesar – os 50 anos do golpe que instaurou uma ditadura militar no Brasil. Mas essas lembranças não devem servir apenas para encher a programação de programas de entretenimento ou palestras que resgatem o assunto, normalmente feitas com historiadores que, muitas vezes, mal conhecem os atuais enfoques que as pesquisas têm dado ao assunto. Elas devem servir para refletir sobre o que passou e, em que medida, ainda está presente em nosso cotidiano. As mulheres, por exemplo, será que elas podem se considerar em uma democracia?

No finalzinho do mês da mulher, no dia 30, a auxiliar de serviços gerais Daiana da Silva Correa, de 27 anos, deu entrada em um hospital de Penedo por ter 70% do corpo queimado pelo companheiro. Dias mais tarde ela morreu em decorrência dos ferimentos. Ao ser preso, o jardineiro Ednilson da Silva de Oliveira, de 31 anos, disse que ateou fogo na mulher porque estava com ciúme. Isso é motivo para matar alguém? Isso é viver em uma democracia?

No dia 29, a estudante de engenharia Michele Diniz Divino, de 30 anos, foi morta a facadas na casa em que morava sozinha, também em Penedo. Embora a polícia ainda esteja investigando o caso, além de latrocínio – roubo seguido de morte -, a hipótese de crime passional também não foi descartada porque a polícia sabe que, infelizmente, as mulheres, muitas vezes, não têm o direito de escolher abandonar seus parceiros.

É comum ver algumas mulheres que apanham de seus parceiros voltarem para o agressor. O motivo é sempre o medo. Medo de que eles façam algo com suas famílias, medo de não conseguir se estabelecer sem eles, medo de perder uma proteção – porque um parceiro não deixa de representar uma proteção para algumas mulheres, mesmo quando agressivos -, medo de ficar sozinha… E todo esse medo é proveniente do sentimento de que elas são menos, aprendido desde o nascimento.

Segundo o Ipea (Instituto de Pesquisa Aplicada), de 2001 a 2011 mais de 50 mil mulheres foram assassinadas só no Brasil, o que dá aproximadamente 5 mil mortes por ano. Destas, aproximadamente 40% foram mortas por um parceiro íntimo. Mas quando essa pesquisa foi divulgada, há alguns anos, ninguém ficou chocado e nem se sentiu revoltado como se sentiu com a pesquisa mais recente do mesmo instituto, que mostrou que, para os mesmos brasileiros, “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas” e que “se elas soubessem se comportar haveria menos estupros”.

O choque com o resultado destas pesquisas não foi devido aos 42,7% que concordaram com a primeira afirmação ou com os 35,3% que concordaram com a segunda. O que impacta nesse caso é o contato com a desconstrução do mito de que o Brasil não é um país machista. Machismo é igual a racismo ou homofobia: muitas famílias afirmam que não têm, porque é feio assumir uma coisa dessas, mas não gostariam que seus filhos brancos se casassem com negros ou que nascessem gays.

Não é difícil se chocar quando jovens mulheres são esfaqueadas ou queimadas por aí, mas será que fazemos uma autoconsciência quanto a todas as torturas que as mulheres sofrem todos os dias? A Lei Maria da Penha foi um grande ganho para o país e seria ainda melhor se fosse cumprida à risca, como determinam seus artigos, mas a repressão feminina passa muito mais pela nossa cultura que por uma questão de legislação criminal. Somos nós que, dia após dia, reforçamos em todas as mulheres a certeza de que elas são menos, muito menos do que os homens.

Os seguros de veículos para mulheres costumam ser mais baratos porque, para as seguradoras, elas causam menos acidentes. Ainda assim, vivemos em um país que pensa que “mulher no volante perigo constante”. Elas têm mais formação técnica que os homens e são maioria também em formação continuada, mas continuam recebendo menos e ocupando posições mais baixas na hierarquia das empresas. São essas pequenas violências, “ensinamentos” que passam dos pais para os filhos e que dificilmente vão permitir uma mudança na cultura machista de nosso país.

Quem, até mesmo mulheres, nunca comentou “se aquilo é tamanho de saia que se apresente”, ou apontou a que fica com “todo mundo” como a fácil, a que vale menos, a desvalorizada. Se repararmos bem, os homens também ficam com muitas pessoas e nem por isso são apontados e quanto ao tamanho das saias, muitos andam sem camisa no dia a dia!

As mulheres não querem ser iguais aos homens, todos são seres muito diferentes e é essa a beleza da vida. Mas elas querem o direito de serem mulheres, serem cidadãs, sem que isso necessariamente signifique que somos menos. Querem poder trabalhar sem ter que mostrar a cada segundo que têm capacidade, usar seus veículos como um meio de transporte e não de afirmação, namorarem quando e quantos quiserem – sejam eles homens e mulheres – e os deixarem quando não se sentirem mais confortáveis nessas relações. Nós queremos a mesma liberdade que aqueles brasileiros sentiram lá atrás, na década de 1980, quando acharam que a ditadura tinha terminado para sempre.

Quem sabe isso não ajude a reduzir as Micheles, Daianas e tantas outras que integram o grupo das 50 mil mencionadas na estatística do Ipea, que acabou passando despercebida?

Há 50 anos um grupo chegou e determinou de que forma deveríamos agir, o que deveríamos falar e até mesmo como deveríamos pensar, usando para isso armas de fogo e porretes. Cuidemos para que nos próximos 50 anos não usemos nossos valores como arma e não sejamos nós os responsáveis por causar os mesmos sofrimentos a outras pessoas. Retomando a pergunta feita acima: as mulheres, quando será que elas poderão se considerar em uma democracia?

Gabrielle Granadeiro
Repórter do jornal BEIRA-RIO

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