Dizer a verdade

Tinha que dizer a verdade, nada mais que a verdade. E o que seria isso senão aquilo que houvera visto de um ângulo bastante subjetivo? De forma despreocupada; que talvez não houvesse sequer visto, talvez sequer existido. Como se sentia incomodado com aquilo! Tanta gente no mundo, ou melhor, nas janelas, nas praças e nos bares de braços cruzados e olhos atravessados famintos por um acontecimento. Gente desejosa de que acontece algo para que vissem do seu jeito e se transformassem em testemunhas oculares diplomadas a dizer a verdade; gente que veria o caso sempre de banda, supondo pela sombra, ao ler dos lábios grossos, toda a verdade.

Tanta gente com esse desejo! Tanta gente para ser a fonte de toda verdade, porque vista com os olhos que a terra há de comer!, e logo ele fora o escolhido pelo acaso.

Agora estava ali diante do amigo que pondo fogo pelas ventas lhe dizia: tenho certeza que estava com outro. Não confio mais nela. Mas me diga você que viu tudo, me confirma o caso? E ele que tinha visto, mas não sabia bem o quê, não desembuchava. Claro, não queria dizer nada. Vira rápido. Era o entardecer. Talvez fora um mero cumprimento. Talvez falassem sobre as águas de março, ou sobre a tal da crise. Logo ele que vinha distraído. Saíra de casa para um passeio a toa, sem nenhum compromisso. Entretanto agora teria de dizer a verdade. A qual nada mais significava que dizer: sim, ela estava com ele eu vi.

Há uma franzina moral dentro de nós: quando encontramos um culpado tudo se resolve e todos podem beber seus drinks, sossegadamente.

Rafael Alvarenga
escritor e professor de Filosofia
www.blogspot.ninhodeletras.com

Você pode gostar

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

O limite de tempo está esgotado. Recarregue CAPTCHA.