Uma doença que mata e joga famílias na miséria

Em apenas 13 meses e meio de pandemia, a Covid-19 vem empobrecendo cada vez mais familiares que dependiam de pais e avós que tiveram suas vidas ceifadas pela gravidade da doença. Essas perdas, além de emocionais, geraram um impacto financeiro negativo, retirando R$ 3,8 bilhões de circulação da economia. O alerta sobre o impacto social das mortes de pessoas com 60 anos ou mais na renda de familiares remanescentes é da economista do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea) Ana Amélia Camarano, especializada em terceira idade. A estimativa do montante perdido com a morte de 301 mil idosos no período é do jornal Valor, avalizada pelo Ipea.

O cálculo tem como base os óbitos listados na Central de Informações do Registro Civil (CRC) e compilados pelo Valor Data, além de informações sobre renda média da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio do Instituto Brasileiro de Geografia eEstatística (Pnad/IBGE) em 2019, ano que precede a crise sanitária. O que aponta que pessoas com mais de 60 anos tinham rendimento total médio de R$ 2.249.

O montante perdido equivale a R$ 294,4 bilhões (1,3% do rendimento total da população nos 12 meses de 2019), o último dado aferido pelo IBGE, que considera salários, aposentadorias, pensões e outras fontes. Mas Ana Amélia diz que, para além do drama humanitário, o cerne do problema está no impacto concentrado dessas perdas no orçamento de famílias que dependiam financeiramente dos rendimentos desses idosos.

Ela calcula o baque financeiro provocado, em média, pela morte de um idoso arrimo de família: há redução de 48,4% na renda per capita dos familiares remanescentes, que cai de R$ 1.475,6 para R$ 760,4. Para efeito de comparação, a perda da renda do trabalho de um integrante adulto, devido a morte ou desemprego, leva a uma redução menor (de 43,7%) na renda per capita dos familiares remanescentes.

– Em muitos casos, quando o idoso morre, a família entra na pobreza, sobretudo agora em que são poucas as chances de recomposição da renda em meio à crise e desemprego alto (provocado pela pandemia). Isso não tem sido observado a contento. No Brasil, ainda se entende a Previdência Social como gasto e não como elemento estrutural do Estado de bem-estar social – diz a especialista.

Entre os estudiosos da terceira idade no Brasil, é consenso que a universalização da Seguridade Social no Brasil, introduzida pela Constituição de 1988, diminuiu a pobreza entre idosos e beneficiou indiretamente não idosos. “Com a renda obtida pela Seguridade Social, eles [idosos] assumem uma salvaguarda de subsistência familiar e invertem o papel social de dependentes para provedores”, escreve Ana Amélia.

ENVELHECIMENTO E “NEM NEM”
Com o passar dos anos, diz ela, o número de idosos que sustentam famílias numerosas se intensificou pelo envelhecimento da população e pela intensificação do fenômeno dos “nem nem”, pessoas que não estudam nem trabalham, primeiro entre jovens de 15 a 29 anos e, mais recentemente, entre homens de 50 a 59 anos desalentados. De fato, dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Covid-19 (Pnad Covid-19) de novembro de 2020, reunidos pela pesquisadora, mostram que, então, 55,4% dos 34,3 milhões de brasileiros com 60 anos ou mais (19 milhões de pessoas) moravam com filhos, parentes, agregados ou empregados domésticos.

Essas famílias que mesclam gerações têm, em média, 2,9 pessoas e são chamadas de “continentes” porque provêm maior cuidado aos idosos. Segundo o IBGE, 65,9 milhõesde brasileiros viviam nesse tipo de arranjo, e a maioria, 35,3 milhões, era de adultos ecrianças. Entre os adultos, 43,1%, cerca de 15,2 milhões, não trabalhavam. Nessecenário, em 21% do total de domicílios brasileiros, mais da metade da renda vem do idoso, seja de aposentadoria, seja de pensões.

Extrapoladas para o universo de idosos vítimas da covid-19 até abril, essas proporções indicam que, potencialmente, 165,3 mil deles estavam nessa situação, e deixaram paratrás cerca de 314 mil familiares ou empregados, possivelmente em dificuldades financeiras. Como não há informações precisas sobre o comportamento da doença entre os idosos de famílias continentes, esses números são projeções, mas ajudam a vislumbrar a dimensão do problema.

FALHA NO AUXÍLIO EMERGENCIAL
O economista Marcelo Neri, diretor do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas (FGV Social), afirma que esse contingente de afetados pode ser considerado conservador, por não considerar o desemprego causado pela pandemia entre os idosos vivos. Ele diz que, na comparação entre o quarto trimestre de 2019 e igual período de 2020, ou seja, antes e durante a pandemia, houve perda real de 18% especificamente na renda do trabalho do grupo com mais de 60 anos, percentual no máximo igualado pelas faixas mais jovens da pirâmide etária. “Os idosos são duplamente penalizados na pandemia, com mais mortes e desemprego maior”, diz.

O fenômeno se soma à perda das aposentadorias e pensões. Neri afirma que osnúmeros do INSS acusam redução de 31% no número de benefícios entre janeiro de 2020 e igual mês de 2021. Para Neri, a estimativa de perdas na ordem de R$ 3,8 bilhões, é “conservadora” porque não reflete seu caráter permanente e não inclui no cálculo aexpectativa de vida tirada das vítimas.

Ele diz ainda que há uma falha grave na formatação do auxílio emergencial que, nessa segunda etapa, funciona com um sub-cadastro da época de sua criação, o que exclui pessoas afetadas ao longo da crise, como filhos e netos antes sustentados por idosos mortos.

Fotos: Reprodução/Reuters e Banco de Imagens

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