Arrumando vitrine

A moça se ajoelhou dentro da loja e começou a arrumar a vitrine. Mas era meio do dia e aquilo me incomodou. Senti-me como uma criança que ao crescer descobre que dentro da roupa do papai Noel está aquele tio brincalhão. A moça foi retirando cada peça da vitrine. Devastava as prateleiras com sua mão tsunâmica. Em seguida passava um pano pelos vidros, soprava os objetos e talvez sequer se lembrasse de seus lugares anteriores.

Ver uma vitrine ser arrumada é um desprazer. Vitrines só poderiam ser vistas depois de prontas, eu penso. E aquela moça ajoelhada arrumando tudo não se incomodava que eu a olhasse com tanta sofreguidão. Será que pensava que eu me encantara por ela? Não moça, não estava em jogo a sua beleza. É que em uma vitrine pronta os olhos da gente encontram os objetos. “Olha aquele relógio ao lado das estátuas africanas”. Temos que procurar pelas coisas e isso surpreende, ainda que não gostemos de nada. E isso, a moça ajoelhada dentro da loja arrumando a vitrine, tirava de mim. Ver alguém raciocinando a arrumação e a disposição dos objetos da vitrine faz do observador um crítico.

Senti que deveria fazer alguma coisa. Levantei, me aproximei da vitrine. Entretanto a moça não se incomodou, não esbarrou em nada, não teve dúvida. Recordei que dias atrás passei em frente a um brechó e vi dois bustos de manequim nus e a venda. Achei aquilo sinistro. Vitrines sendo arrumadas, manequins a venda… são como cirurgias: não necessitam que todos vejam.

Eu até pensei em entrar na loja de modo a fazer que a moça se incomodasse. Mas não tive coragem. Pior de tudo seria me ver dentro de uma vitrine sendo ainda arrumada.

Rafael Alvarenga
Escritor e professor de Filosofia
ninhodeletras.blogspot.com.br

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