QUEM PENSA? Se recicla pouco, o consumo é demasiado e sempre tem alguém levando vantagem

Durante toda a semana fiquei observando a quantidade de lixo e o tipo de lixo de Resende. E é assustador o consumo pouco pensado que praticamos e com isso como somos responsáveis por essa produção de lixo, e para completar, pouco nos preocupamos com a destinação deste lixo. O BEIRA-RIO estará colaborando com este tema, a partir da próxima semana, de forma mais aprofundada, dedicando uma página a este debate sobre consumo e reciclagem. Para iniciarmos o assunto selecionei um artigo que considero importante para reflexão do tema e nos mostra que a intenção ecológica já foi em alguns aspectos, sepultada pelo interesse econômico, ainda que mascare isso com a fachada dos três Rs (Reduzir, Reutilizar e Reciclar). O artigo é do professor de gestão ambiental, biólogo e doutor em Ciências Sociais, Philippe Pomier Layrargues (2002), e para ler todo o texto acesse http://migre.me/ipYCx. Peço que considere possíveis alterações numéricas que precisam de atualização, mas isto não tira a importância da informação e dos alertas feitos sobre os interesses de campanhas de reciclagem, assim como programas governamentais que vendem a ideia de que estão trabalhando em prol do meio ambiente. Abaixo apenas parte do texto para iniciarmos o debate.

Ana Lúcia
editora do jornal BEIRA-RIO
analucia@jornalbeirario.com.br

O CINISMO DA RECICLAGEM: o significado ideológico da reciclagem da lata de alumínio e suas implicações para a educação ambiental

O itinerário de um reducionismo

A questão do lixo vem sendo apontada pelos ambientalistas como um dos mais graves problemas ambientais urbanos da atualidade, a ponto de ter-se tornado objeto de proposições técnicas para seu enfrentamento e alvo privilegiado de programas de educação ambiental na escola brasileira. A compreensão da necessidade do gerenciamento integrado dos resíduos sólidos propiciou a formulação da chamada Política ou Pedagogia dos 3R’s, que inspira técnica e pedagogicamente os meios de enfrentamento da questão do lixo.

No entanto, apesar da complexidade do tema, muitos programas de educação ambiental na escola são implementados de modo reducionista, já que, em função da reciclagem, desenvolvem apenas a Coleta Seletiva de Lixo, em detrimento de uma reflexão crítica e abrangente a respeito dos valores culturais da sociedade de consumo, do consumismo, do industrialismo, do modo de produção capitalista e dos aspectos políticos e econômicos da questão do lixo. E a despeito dessa tendência pragmática, pouco esforço tem sido dedicado à análise do significado ideológico da reciclagem, em particular da lata de alumínio (material que mais se destaca entre os recicláveis), e suas implicações para a educação ambiental reducionista, mais preocupada com a promoção de uma mudança comportamental sobre a técnica da disposição domiciliar do lixo (coleta convencional x coleta seletiva) do que com a reflexão sobre a mudança dos valores culturais que sustentam o estilo de produção e consumo da sociedade moderna.

Essa prática educativa, que se insere na lógica da metodologia da resolução de problemas ambientais locais de modo pragmático, tornando a reciclagem do lixo uma atividade-fim, ao invés de considerá-la um tema-gerador para o questionamento das causas e consequências da questão do lixo, remete-nos de forma alienada à discussão dos aspectos técnicos da reciclagem, evadindo-se da dimensão política. Analisando-se a literatura a respeito da interface entre a educação ambiental e a questão do lixo, observa-se uma excessiva predominância da discussão a respeito dos aspectos técnicos, psicológicos e comportamentais da gestão do lixo, em detrimento de seus aspectos políticos. A discussão conduzida pela educação ambiental está consideravelmente deslocada do eixo da formação da cidadania enquanto atuação coletiva na esfera pública, já que há um expressivo silêncio no que se refere à implementação de alternativas para o tratamento do lixo por intermédio da regulação estatal ou dos mecanismos de mercado. Além disso, a ques
tão do lixo, nas suas variadas facetas, ainda não se tornou objeto de demanda social específica pela criação de políticas públicas, a exemplo das lutas socioambientais já consolidadas em alguns movimentos sociais. As dispersas e isoladas iniciativas de criação de cooperativas de catadores de lixo, por exemplo, ainda não alcançaram uma articulação ampla e coesa o suficiente para transformar essa atividade em política pública. É, então, na tentativa de resgatar o significado político-ideológico da reciclagem que apresentamos a presente reflexão.

De acordo com Sewell (1978), as crescentes objeções ao volume de resíduos sólidos dividem-se em cinco categorias: saúde pública, custos de recolhimento e processamento, estética, ocupação de espaço em depósitos de lixo e esgotamento dos recursos naturais. Mas a discussão que inaugura o debate a respeito da Coleta Seletiva de Lixo como uma alternativa tecnológica para o tratamento dos resíduos sólidos baseia-se no panorama da saturação dos depósitos de lixo: a cada ano, avolumam-se as dificuldades que os municípios encontram para a destinação final do lixo. Problemas de ordem política e técnica tornam a coleta convencional de lixo cada vez mais onerosa, a ponto de favorecer o surgimento da tecnologia baseada na coleta seletiva, complementar à coleta convencional. Um fator adicional ao surgimento da Coleta Seletiva de Lixo é a constatação da possibilidade de esgotamento dos recursos naturais, sobretudo dos não-renováveis: segundo projeções futuristas de alguns especialistas, em especial do controvertido Clube d
e Roma (Meadows et al, 1978), o uso de certos recursos minerais pode provocar um colapso em curto espaço de tempo, se as tendências na exploração mineral não forem alteradas.

O texto a seguir, extraído de uma homepage brasileira especializada na divulgação de dados sobre a reciclagem do lixo, retrata fielmente a percepção dominante a respeito da função da Coleta Seletiva do Lixo:

“A coleta seletiva é uma alternativa ecologicamente correta que desvia do destino em aterros sanitários ou lixões, resíduos sólidos que podem ser reciclados. Com isso, dois objetivos importantes são alcançados. Por um lado a vida útil dos aterros sanitários é prolongada e o meio ambiente é menos contaminado. Por outro lado o uso de matéria-prima reciclável diminui a extração dos nossos tesouros naturais. Uma lata velha que se transforma em uma lata nova é muito melhor que uma lata a mais. E de lata em lata o planeta vai virando um lixão…”

A Política dos 3R’s segundo o discurso ecológico alternativo e oficial

Carvalho (1991), ao analisar o discurso ambientalista governamental brasileiro, aponta a existência de duas matrizes discursivas sobre a questão ambiental: um discurso ecológico oficial, enunciado pelo ambientalismo governamental, representante da ideologia hegemônica e encarregado de manter os valores culturais instituídos na sociedade; e um discurso ecológico alternativo, proferido pelo ambientalismo original strictu sensu, corporificado pelo movimento social organizado, representante da ideologia contra-hegemônica e encarregado de disseminar valores subversivos à ordem social e econômica instituída. Em pesquisa anterior (Layrargues, 1998), identificamos no discurso do ambientalismo empresarial brasileiro a mesma postura do governamental, ou seja, a missão discursiva de difundir e cristalizar a ideologia hegemônica, impedindo ao mesmo tempo, qualquer manifestação subversiva. É importante frisar que, no limite, apesar da possibilidade de articulação estratégica para o enfrentamento de determinados problemas ambientais, o ideário do ambientalismo alternativo opõe-se ao oficial. Enquanto o oficial deseja manter o status quo, o alternativo deseja transformá-lo. Desse modo, cada composição ideológica terá uma determinada visão da questão do lixo, uma determinada leitura do significado da Política dos 3R’s e, no que se refere à educação ambiental, um conjunto de proposições pedagógicas diferentes, de acordo com a visão de mundo e os interesses que as inspiram.

Para o discurso ecológico alternativo, a questão do lixo é um problema de ordem cultural e, assim, ele situa a cultura do consumismo como um dos alvos da crítica à sociedade moderna. Martell (1994) chega inclusive a afirmar que o consumismo é o item mais expressivo da crítica da sociedade sustentável. Segundo Ekins (1998a), desde que Adam Smith afirmou que a produção tem como finalidade o consumo, a economia estabeleceu como objetivo aumentá-lo, e ele passou a ser entendido culturalmente como sinônimo de bem-estar. O problema é que atualmente o consumismo é visto também como responsável por uma série de problemas ambientais, e desse modo, não pode mais ser compreendido unicamente como sinônimo de felicidade.  (…)

A Pedagogia da Reciclagem é liberal ou progressista?

Como a educação ambiental interage com essa situação, em que momento o discurso ecológico oficial substitui a Pedagogia dos 3R’s pela Pedagogia da Reciclagem? A educação ambiental, que se traduz como a “atribuidora de sentidos” aos problemas ambientais, se qualifica aqui como liberal ou progressista? À primeira vista, causa estranheza a tentativa de rotular o modelo pensado e praticado de educação ambiental. Contudo, autores como Carvalho (1998), Lima (1999), Guimarães (2000) e Loureiro & Layrargues (2000), ressaltam que já não é mais possível definir a educação ambiental a partir de um único modelo, não é mais possível se referir genericamente a uma educação ambiental, sem qualificá-la. Nas palavras de Carvalho (1998), “do mesmo modo que o debate ecológico, a educação ambiental ao expandir sua área de visibilidade e adesão pelos diversos setores da sociedade tem sido associada a diferentes matrizes de valores e interesses, gerando um quadro bastante complexo de educações ambientais com orientações metodológicas e políticas bastante diversas.” (p. 124)

A educação é apontada ingenuamente como solução para tudo, como se fosse um mero instrumento de socialização. Mas é também, por intermédio da escola, um instrumento de dominação, de manutenção da ideologia hegemônica e dos interesses da classe dominante, em luta contra as forças contra-hegemônicas. A educação é um aparelho ideológico que se torna palco permanente de conflito entre interesses conservadores e libertários. E cada ação cotidiana, cada projeto, como os programas de Coleta Seletiva de Lixo nas escolas, carregam uma determinada filiação ideológica, ainda que não intencional.

A educação ambiental progressista, concebida como instrumento de transformação social, no entender de Almeida Jr. (1992), não visa apenas à internalização da pauta ambiental na escola e na sociedade. Seu verdadeiro sentido é a promoção da reflexão dos valores fundamentais da sociedade moderna e das instituições que se valem desses princípios para dominar, oprimir e explorar tanto a natureza como certas camadas da sociedade.

(…)

Enfim, sem esquecer que os padrões de consumo praticados pelo primeiro mundo e pelas elites do terceiro mundo – que não são mimeticamente generalizáveis ao conjunto da humanidade -, é que constituem a força propulsora do esgotamento ambiental (Parikh et al, 1994), o verdadeiro consumidor verde, ou melhor, o verdadeiro cidadão consciente e responsável não é aquele que escolhe consumir preferencialmente produtos recicláveis, ou que se engaja voluntariamente nos programas de reciclagem, mas aquele que cobra do Poder Público, por meio de processos coletivos de pressão, que o mercado ponha um fim na obsolescência planejada e na descartabilidade, e, sobretudo, que exige do Estado a implementação de políticas públicas que destruam os mecanismos perversos de concentração de renda, propiciando, assim, a possibilidade de o grupo social dos catadores e sucateiros repartir igualitariamente os ganhos oriundos da economia proporcionada pela reciclagem do lixo, os quais, segundo Calderoni (1998), giram em torno de R$ 4,6 bilhões anuais. Se a educação ambiental pode ao mesmo tempo reverter tanto a degradação ambiental como a opressão social e a exploração econômica, por que não fazê-lo?”

Você pode gostar

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

O limite de tempo está esgotado. Recarregue CAPTCHA.