Reproduzido do blog do jornalista Milton Temer. Texto do jornalista Leandro Uchoas, sobre sua experiência numa viagem à Índia. Penso que cabe para um reflexão nesses tempos onde prefeitos querem carros blindados, governadores não têm controle sobre órgãos de segurança, presidentes são reféns das alianças de poder, parlamentares debocham de causas da dignidade humana e pessoas se mostram insensíveis aos humildes e à injustiça. Trago apenas uma pequena parte o texto, quem tiver interesse na leitura completa – recomendo – é só acessar http://miltontemer38.blogspot.com.br/2013_03_01_archive.html.
Foi em uma cidade de nome esquisitíssimo que pisei pela primeira vez no país mais incrível do mundo. Em Thiruvananthapuram, comecei a descobrir a Índia – que, como a China, tem uma população gigantesca e cultura milenar. Logo no primeiro dia, dos 42 que passei no país, vi homens montados em elefantes, fiéis peregrinos purificando-se em um lago, templos monumentais, uma música de sonoridade totalmente nova, casa de marajás, tuck-tucks, mulheres em lindas vestes, e uma cidade organizada de uma maneira totalmente outra. Foi como se tivesse aterrissado em uma nova galáxia.
(…) Queria ir atrás de utopia. Fui, e encontrei.
MAHATMA GANDHI É O CARA
Foi ele quem me trouxe para a luta, e isso já seria suficiente para que eu tivesse por ele uma relação de respeito. O fato é que, de longe, minha principal meta na Índia, dentre tantas, era seguir os passos de Mahatma Gandhi. Ir a todos os lugares onde ele construiu sua biografia notável. (…).
A princípio, eu queria tentar ir além da imagem que o mundo criou de Gandhi, dos diferentes gandhis vendidos ao senso comum, confundindo pacifismo com passividade, em benefício da ordem, da manutenção do status quo. O Gandhi que me trouxe para a luta, que me transformou num homem de esquerda – embora muitos desinformados o considerem reacionário –, defendia a desobediência civil, e a não-violência ATIVA.
O modelo é simples: diante de uma injustiça, desobedeça as leis e as autoridades, sem utilizar de violência como arma. Tenha clareza sobre quem é seu inimigo, mas não tenha ódio por ele. A síntese é essa. Boa parte dos militantes movem-se pelo sentimento de indignação diante das injustiças. É natural. Gandhi me ensinou, porém, que há um combustível ainda melhor para os militantes do que a indignação, que é o amor pela humanidade.
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Já na Índia, estive na Mahatma Gandhi University, em Kottayam. O diretor da Escola de Estudos Gandhistas e de Desenvolvimento Socioeconômico, John Moolakkattu, foi bastante receptivo, e inclusive me convidou para passar o Natal com sua família, que era cristã. Também no estado de Kerala, estive em Vaikom, em um templo lindíssimo em que, tempos atrás, as castas hindus mais altas tinham proibido as castas mais baixas de frequentar. Gandhi foi à cidade só para lutar contra isso. No lugar onde viveu lá até vencer a luta, hoje funciona a sede do Partido Comunista, o mais forte do estado.
Em Bombaim, estive na casa onde ele morou quando esteve na cidade (Mani Bhavan), hoje um simpático museu em sua homenagem. O site deles é uma das mais completas compilações de textos de e sobre Gandhi. E em Pune, estive no Agakhan Palace, onde ele esteve preso de 1942 a 1944, e onde morreram seu fiel secretário e amigo, Mahadev Desai, e sua esposa, Kasturba Gandhi. Ambos estavam presos voluntariamente, apenas para acompanhar Gandhi.
Planejei estar na cidade no dia 1º de janeiro, Dia Internacional da Paz, em homenagem a Kasturba, que deveria ser reconhecida como uma das principais lideranças da independência indiana, caso não vivêssemos em um mundo machista. O próprio Gandhi lhe considerava sua “melhor professora de não-violência”. Ela morreu deitada em seu colo, em 22 de fevereiro de 1944. “Perdi a melhor metade de mim”, disse ele. E todos os dias 22, de todos os meses, Gandhi jejuava e declamava todos os versos da Bhagavad Gita, em homenagem a Kasturba. Fez isso até o fim de sua vida.
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Que maravilha era Wardha! Ainda bem que fui. Fiquei hospedado no próprio Sevagram Ashram, fundado por Gandhi para promover seus 11 princípios de vida. Simples, as pessoas vivem até hoje como ele! Com casas de pau a pique, é simplório, mas é lindo! Inteiramente preservado, e com todos os utensílios usados por Gandhi, Kasturba, e Mirabeh – a famosa e fiel discípula. Lá, comi uma das mais gostosas comidas, e fiquei amigo de uma equipe grande de engenheiros agrônomos que fazia pesquisas com orgânicos no local (também sou formado em engenharia). Há também um museu muito simples, e muitos livros de Gandhi e Vinoba, seu seguidor.
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Porém, a experiência mais marcante em Ahmedabad, dentre as relacionadas a Gandhi, foi a visita à Gujarat Vidyapith, universidade fundada por Gandhi em 1920, que ainda é inspirada em seus ideais. O campus e os banheiros são limpados pelos próprios alunos, divididos em brigadas. A arquitetura é totalmente pensada de forma a estimular o convívio e a sociabilidade. O uniforme é fabricado manualmente, em máquinas de tecer. Tem importantes estudos de energias alternativas (bicicletas ergométricas rudimentares são espalhadas pelo campus, para que os alunos se exercitem e, ao mesmo tempo, gerem energia).
Quando um amigo de Gandhi lhe disse que a universidade não teria alunos, por conta da rigidez, ele respondeu: “se não tiver alunos, ensinaremos os macacos. O que não podemos é abrir mão dos nossos ideais”. Lá, eles dão um curso gratuito de quatro meses sobre não-violência, e me convidaram a estudar nesse curso, sem precisar passar por seleção! (…).
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Naquela noite, eu deitei na cama, e a ficha caiu. “Hoje estive na casa onde nasceu Mahatma Gandhi, inteiramente preservada tal como era. E agi como se estivesse num lugar qualquer”. (…)
Voltei a fazer visitas relacionadas a Gandhi apenas semanas depois, em Nova Delhi. O Rajghat, lugar onde o corpo dele foi cremado, para que as cinzas fossem lançadas no Ganges, permanece com uma chama constantemente acesa, e tem intensa visitação. Visitei ainda o Gandhi Peace Foundation, ong de promoção da paz, onde fui muito bem recebido. Também visitei três museus sobre ele. O principal, National Gandhi Museum, tem uma infinidade de utensílios que pertenceram a ele.
No entanto, o auge deveria vir ao final, como planejado. Gandhi foi assassinado em 30 de janeiro de 1948 na Birla House, casa de um importante empresário (Birla), onde ele estava morando porque estava doente. Ele caminhava para fazer sua oração matinal, às 7h, quando levou três tiros. No local, hoje funciona um museu, um memorial e um museu interativo. Antes da doença, Gandhi viveu no Harijan Sevak Sangh, comunidade alternativa que ele criou na capital do país somente para combater a “intocabilidade” – pessoas consideradas intocáveis, algo quase extinto no país.
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No dia 29, visitei o Harijan Sevak Sangh, e fiquei encantado! O lugar ainda funciona segundo os princípios de Gandhi. O centro médico só utiliza medicamentos naturais, medicina ayurvedica. Há uma escola para crianças oriundas das vilas. Os uniformes também são feitos manualmente. Tudo é coletivizado. (…).
No dia 30 de janeiro, exatos 65 anos após o assassinato do Mahatma, e dois dias antes de meu retorno ao Brasil, lá estava eu na Birla House. Visitei o quarto onde ele dormia e tinha reuniões, e a casa. Curti o maravilhoso museu interativo. Vi fotos, vídeos, livros, e as pegadas no chão, reproduzindo o caminho que ele fez até a tragédia. No horário da cerimônia, me sentei. Uma hora e meia daquela música de sonoridade única, homenageando o Mahatma.
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Pela primeira e única vez na minha vida, orei diretamente a Mahatma Gandhi. Não sei se foi uma coisa boa rezar para um homem que nunca quis ser chamado de santo, mas naquele momento senti a necessidade de fazê-lo. Agradeci-o por ter mudado minha vida, por ter me mostrado a importância de se resistir aos processos de exploração, fazendo-o sem ódio, com amor e paz no coração. Agradeci-o, ainda, por eu ter conhecido seu incomparável país através de seus próprios passos. Agradeci, também, por estar vivendo aquele momento que, repito, não sou capaz de traduzir em palavras. Levantei, e fui embora. Já estava pronto para voltar ao Brasil.