Cortiço de luxo

Mora-se a 15 minutos da praia. A rua tem árvores, vento e passarinhos. E o preço do aluguel espanca cada hora de trabalho dos inquilinos. Quarenta apartamentos. Uma parede separando cozinhas, outra separando quartos. E mais outra separando banheiros. Vizinhos do lado, embaixo, atrás. Vizinhos por toda parte onde a vista alcança.

E não demora nada pra gente conhecer a vida de cada um deles, ainda que jamais veja seus rostos. O de baixo, à direita, gosta de beber frutas batidas todas as manhãs. 7:15, mais precisamente, liga seu liquidificador que passa então a ser compartilhado por todos nós. A vizinhança do lado dorme tarde e ri dos casos noticiados pelo telejornal. Prática terrível, pois nos provoca um instante de curiosidade. A vizinha de baixo não faz barulho e isso me causa suspeita e temor. Fico com a impressão de que está a espreita até mesmo de meus pensamentos.

Mas devo dizer que o mais perigoso de todos é o cronista. Esse que entrega horas a preparação de uma frase capaz de transformar um mísero vizinho e seu singelo cotidiano em personagens tão enfáticos. Eu, se me fosse dada em algum momento a oportunidade de conversar com a vizinha sobre esse assunto, diria logo que tomassem cuidado com o vizinho cronista. Esse que quando se diz incomodado escreve. Escreve e diz que inventou.

Tudo com a maior das caras de pau, ou seja, aquela que a crônica lhe permite ter.

Rafael Alvarenga
Escritor e professor de Filosofia
ninhodeletras.blogspot.com.br

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