Relato de um peixe

Um peixe. Onde? Lá embaixo. Era o que diziam os estudantes que dos altos andares do prédio olhavam através das janelas. Um peixe. E apontavam para o dorso amarelado do animal. Bem, o peixe, por sua vez, ouvia e dizia: Sou muito mais que um peixe. Sou o super homem dos peixes. Esse tanque lodento! O limo esvoançando como se fosse tiras de renda verde. O sujeito que cuidava da manutenção foi demitido. Ninguém liga mais o chafariz. Também se ligar a sujeira acorda e a água fica com um aspecto pantanoso.

Se eu fosse apenas um peixe, e os peixes desse mundo que me desculpem, já teria morrido faz tempo. Ou alguém acredita que há oxigênio nesse calabouço? Houve um tempo em que serviam uma ração a base de soja sabor camarão. Primeiro sou um peixe de água doce. Segundo, acho que a trangenia do alimento foi a causa da morte do colega que nadava aqui comigo.

Sou é um verdadeiro monstro aquático. E se pudesse sairia daqui aos sobressaltos mandando todos se danarem. Mas também vou pra onde? Mergulhar no primeiro valão e ser abatido por uma garça? E depois a cidade anda tão perigosa. É bala perdida, sequestro. Às vezes acho que deveria agradecer por não respirar esse ar de vocês. Pensando bem no verão o tanque é agradável, chega até a bater um solzinho. Fico relaxado. O problema é durante a noite. Vem um casal. Senta no banco e é sempre a mesma conversa: Tira a mão daí! Mas meu amor aqui não tem ninguém só um peixe.

Como peixe eu vou dizer pra vocês, nada me irrita mais que esse pouco-caso: é um peixe, só um peixe.

Rafael Alvarenga
Escritor e professor de Filosofia
ninhodeletras.blogspot.com.br

Você pode gostar

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

O limite de tempo está esgotado. Recarregue CAPTCHA.