Vida de cão

Vida de cão é o que vou descrever agora. Era uma tarde de outubro. Quente e cheia de vento. Não vi o cão espreitando o açougue. Não vi sua estratégia, sua paciência resistindo ao desespero da fome. Não vi quando entrou sorrateiro e abocanhou um pedaço comprido de pelanca. Não vi, mas foi quando o açougueiro se virou amolando a faca de desossar. Não vi o cão arriscando a vida por uma pelanca branca, comprida, borrachuda. Não vi seu bote certeiro na lata de alumínio colocada no chão porque se aproximava o momento de um grande e velho caminhão vir recolher ossos e pelancas. Não vi como dera tudo certo para o cão que saíra do açougue com a pelanca balançando da boca trêmula de fome. Não vi quando gritaram “ladrão” e ele esbugalhou os olhos em direção a qualquer caminho que o livrasse de um ponta pé.

Vi quando o cão já estava na rua. No meio do asfalto quente. Os carros indo e vindo, desviando. E ele lá, se arriscando com aquela pelanca branca e grande balançando, pendurada na boca. Fiquei olhando esperando pelo desfecho. Vida de cão, pensei. Devia engolir logo a pelanca inteira. Pois estava prestes a morrer atropelado sem desfrutar do sucesso do furto vespertino. Mas talvez ele também houvesse pensado nisso. E bem antes de mim chegado a conclusão de que era impossível engolir aquela pelanca inteira sem engasgar e colocar em risco a própria vida. Não dava para parar no meio do asfalto e rasgar pedaços médios de pelanca.

Vida de cão! Resolvi seguir e novamente não ver mais nada.

Rafael Alvarenga
Escritor e professor de Filosofia
ninhodeletras.blogspot.com.br

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