Criançadaria

A criança só é metade naquilo que faz quando alguém lhe corta o ímpeto. E o nome dessa faca afiadíssima é educação. Processo doloroso. Que retalha, desmantela, esmaga, picota, comprime, escalpela, corta excessos. A criança tem quilos e mais quilos de vontade pura, mas não exatamente translúcida. Tantas vezes quer de um jeito turbulento, áspero e invocado. A pureza de seu querer não está na homogeneidade do sentimento e sim em seu querer salpicado de pedaços de lembranças e na sua capacidade de receber sem preconceitos os estímulos que o mundo oferece.

No geral a criança é inteira para si e para o que quer. E talvez seja por isso que abandona uma brincadeira ou tarefa em qualquer parte e tão logo se embrenha em outra. A criança recusa o que faz antes que a vontade comece a se esvair.

Há quem diga que elas têm dificuldade de se concentrarem nas coisas-objetos. Elas se concentram até o auge do querer fazer. Recusam-se a sentir a vontade minguar (eu entendo isso – creio – pois corto as rosas antes de começarem a minguar nas roseiras).

Mas não se preocupem, pais, mães e preceptores não faço aqui uma ode a des-educação. Afinal, aqui nesse mundo estamos nós (pais, mães e preceptores) cheios da responsabilidade de educar, o que não é um mal em si, pois francamente, não existem males em si.

O problema não é cortar os excessos, mas como o vamos praticar. Às nossas crianças (e a nós também) resta tocar o mundo como está hoje, ou inventar novas formas de tocar novos mundos. E não adianta torcer apenas, é preciso fazer com que a segunda opção seja nosso futuro.

Rafael Alvarenga
Escritor e professor de Filosofia
ninhodeletras.blogspot.com.br

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