Animal faminto

O cachorro vira-latas e magricela espreitava pelo portão. Não era traiçoeiro. Não aguardava a hora do ataque. Não tinha nenhuma chance de enfrentar. Buscava a aceitação através da benevolência humana. A família fazia um churrasco e o cheiro da gordura pingando na brasa chamava o cão vagabundo. O cronista observava o animal e desfiava ponderações sobre seus artifícios. Cria que ao bicho só restava à resignação, a espera e a esperança. Pois a demonstração de fraqueza dada pelo seu corpo sequer lhe ofereciam o crédito para uma ficção. O cronista não inventava, previa. No seu texto o churrasco renderia alguns restos de carne dura para o cão que passaria a tarde inteira dormindo próximo a cerca. Sem competência para seduzir os humanos; sem força para encarar o cachorro que se punha como dono do território ao mostrar o rabo erguido e o pote cheio de água fresca.

O cronista, sentado à sombra e protegido pela sua imaginação, não suspeitou da força da fome, já que degustava do churrasco vespertino. E foi justamente a fome, esse elemento que tem a seiva de um fenômeno natural, que surpreendeu a todos. O cachorro vira-latas, com o desespero nos olhos, entrou sorrateiro por uma falha da cerca. Não acordou o cachorro da casa, então mergulhado no cochilo das três da tarde, foi tão preciso que abocanhou dois gomos de linguiça toscana sobre a grelha quente. Queimou os beiços e ouviu gritos e risos. Torpe e suicida buscou sair pelo mesmo buraco, o que conseguiu, porém não sem antes perder um pedaço do rabo para o cachorro da casa, acordado pelo alarido humano.

O cronista não acreditou. Teria que refazer o fim da crônica. E jamais voltaria a subestimar um animal faminto.

Rafael Alvarenga
Escritor e professor de Filosofia
ninhodeletras.blogspot.com.br

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