Vendo miséria desde Manoel Bandeira

Não era um homem que revirava os sacos de lixo. Não era aquele homem que na demonstração de uma humanidade miserável fazia o poeta Manoel Bandeira consternar-se. Tanto tempo faz que ele viu um bicho na imundície do pátio. Algo faminto que revirava, procurava, fuçava e engolia com voracidade qualquer coisa que encontrava.

Disse o poeta que o bicho era um homem. E que choque! Era o homem que ele confundira inicialmente, pelo barulho, pelo remexer, com um gato, com um cão, com um rato. Devo dizer que ontem eu também vi. Mas não era rato, gato tampouco cão. Também não era um homem. Pois isso incomodaria demais: nunca estarei acostumado com tamanho tapa na cara.

É que o bicho era um gavião enorme. De cabeça branca, garras afiadas e bico de rapina. Pousado sobre a cerca de um sítio que margeia a rodovia, a ave rasgava sacos pretos de lixo fedorento; era levada por um desespero de quem voara o dia inteiro sem avistar uma presa sequer. Toda majestade do gavião empapada em chorume enquanto carros e ônibus e caminhões e motocicletas seguiam pela rodovia. Não havia mais o que caçar. A fome transforma a condição de ser vivo em desgraça.

Se Manoel Bandeira visse o gavião não teria com o que confundir. O gavião que revirava os sacos pretos de lixo não se parece com um cão, não se parece com um gato, não se parece com um rato. Não pode ser outra coisa senão um gavião. Tão miserável quanto um ser humano que revira o lixo em busca de viver por mais um dia.

Rafael Alvarenga
Escritor e professor de Filosofia
ninhodeletras.blogspot.com.br

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