Se não fossem os urubus…

Os prédios sorriem até às nove da manhã. Depois começam a querer cerrar os olhos e pelo tanto de força que esse desejo necessita aparece uma e outra ruga até então escondida no concreto. Como é difícil ter a existência plantada de frente para o mar – reclamam nessas horas.

Nessa parte do mundo sequer parece que se está no mundo. Um homem varre e a calçada está limpa. Outro corre para cuidar da saúde e o corpo agradece. As crianças dormem tranquilas, pois não há bicho papão. E quem liga a televisão para ver pela novela crê que Deus escolheu alguns para morar nesses lugares e serem belos e incríveis.

Contudo não demora e a beira mar de corpo dourado é beijada por uma língua purulenta. Grossa, fétida, repugnante. Mas de onde vem isso? Pergunta o varredor, o corredor, as crianças e quem vê a novela. Quem se atreve a ameaçar a vida no paraíso?

Felizes dos urubus que chegam. Tem comida farta no paraíso já que com o esgoto vêm também carniças. É uma festa! Alimentam-se a beira mar. E ninguém ousa ir escorraçá-los. Sentem nojo. Quando deveriam sentir vergonha. Pois, o esgoto que toma posse do paraíso não vem da vassoura do varredor, tampouco dos urubus repugnados.

Mas então de onde vem o esgoto horroroso se aqui tudo é belo e luminoso? Perguntam numa tentativa metafísica de argumentar que algo não pode gerar o seu oposto. Esquecem que as coisas são criadas no mundo, dentro do tempo. E que sem os urubus, aí sim, a coisas ficaria ainda mais fedida.

Rafael Alvarenga
Escritor e professor de Filosofia
ninhodeletras.blogspot.com.br

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