“Como criaram a noite”

Hoje pela manhã acordei antes da hora habitual. Cerca de duas horas antes, mas sem a sensação de ter dormido bem e de ter descansado o suficiente. O sono já havia partido sem o meu consentimento e para mim restava apenas um descompasso de ar entrando e saindo e uma reverberação da voz do meu coração.

O silêncio foi sendo vencido aos poucos pelos primeiros sons do amanhecer. E, então, vigiando uma pequena fresta na janela fui vendo o dia aos poucos chegar e se colocar no lugar da noite.

Naquele momento me lembrei de uma lenda indígena que teatralizamos na época em que fiz o Ensino Médio sob a batuta do inesquecível maestro Gerald Galloway, um inglês culto que ajudou a mim e meus amigos da época com a arte do canto e da representação: “Como criaram a noite”.

Houve um tempo em que não existia a noite. Existia somente o dia. A filha do grande chefe Cobra Grande pediu a seu pai, como presente de casamento, conhecer a noite. O pai mandou duas pessoas em uma canoa buscar o coco, onde estava guardada a noite e que ficava na outra margem do rio. Aos canoeiros deu a ordem de não abrirem esse coco. Mas quando eles estavam voltando o coco começou a balançar e a fazer barulho. Eles não resistiram à curiosidade abriram. A noite escapou e tudo ficou escuro. Então, Cobra Grande usou o fio do cabelo da filha para dividir a noite do dia, já que seria impossível, agora que misturados, recolher a noite novamente para dentro do coco.

Os mitos foram criados para que o homem pudesse responder às suas perguntas quando não tinha a razão ao seu alcance. E esse, em especial, acho tão bonito que sempre que vejo o dia chegando ou partindo, o entardecer ou amanhecer me remetem à imagem da enorme cabeleira da filha do Cobra Grande e seu pai cortando o dia da noite com esse fio, fazendo dessa passagem um momento tão tênue e delicado, algo tão mágico e encantador, ao ponto de ser impossível precisarmos a olho nu o momento em que um se vai e o outro fica.

E assim, são tantas outras coisas da vida que são cindidas, desligadas, fragmentadas e rompidas, sem que saibamos quando houve a separação. Coisas que vão se perdendo, se modificando até o ponto de não mais reconhecermos. Ao ponto de não existir em nós o sentimento do pertencimento.

É então que criamos mitos, histórias fantasiosas para justificar ou explicar o porquê, mas que quando nos damos conta lá está apartada de nós como o dia que se apartou da noite: leve, discreta, silenciosamente…

Ângela Alhanati
contato@angelaalhanati.com.br
Livre pensadora exercendo seu direito à reflexão

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