Os pardais e o tempo

Eu não recolho as migalhas do chão depois do café da manhã. Apenas me levanto lavo a xícara e vou me sentar rente ao sol que entra pela janela do lado oposto do cômodo. Rapidamente os pardais vão entrando sem o amparo do voo. Vem quicando, arranhando as garras finas no piso frio e brilhoso. Com atenção chega se até a ouvir seus passos.

No entanto, há tempos atrás, quando isso teve início, eles chegavam de olhos arregalados e asas alertas. A bem da verdade, penetravam na cozinha através do pouso final de um voo interesseiro, porém bastante desconfiado. Viam nas migalhas o risco da conquista do alimento. Mas vinham. Como iriam sempre, como se arriscariam sempre, naturalmente.

No entanto agora a relação ganhou novos contornos. Eu até me levanto para saber o motivo que leva o cachorro a tanto latir no quintal. Contudo os pardais não se apartam. Sabem que eu não ofereço qualquer perigo e que, além disso, não é permitido ao cachorro entrar em casa. E assim eles permanecem pelo chão, rodeando a mesa, escolhendo as migalhas a serem degustadas ali mesmo, com discreta bonança. E eu retiro as pilhas do grande relógio de parede e espero. Não quero que aquele tempo seja contado, tampouco amaldiçoado. Espero os pardais saírem com os mesmos passos que os trouxeram e então me levanto. Ponho novamente as pilhas no relógio e começo o tempo do dia.

Depois disso, não há mais migalhas pelo chão. E os pardais voam lá fora onde o tempo tem a altura do sol.

Rafael Alvarenga
Escritor e professor de Filosofia
ninhodeletras.blogspot.com.br

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