Uma tarde para mim

À tarde eu pedi que chovesse. Mas não com o volume de uma tempestade incauta. Na verdade eu queria ficar em casa, sozinho, preguiçoso e protegido pelo argumento prateado de que a chuva impedia meu caminhar. Às vezes somos tão egoístas! Queria a chuva e o silêncio da solidão inteiramente para mim. E se viesse tempestade, vento selvagem, céu de apocalipse, frio de se estranhar e queda de energia elétrica, o bairro se encheria de uma corriola destemperada! Seriam pais e mães chegando esbaforidos e preocupados do trabalho. Crianças chorando, cachorros acordados latindo em direção à amoreira que parecia ter recebido entidade d’além mundo. Não! Não era isso que eu queria, pois todo esse escarcéu de nada me teria serventia.

Por isso meu pedido foi exigente, detalhista, preciso. Que chovesse uma chuva leve, entretanto dotada de capacidade para molhar quem se atrevesse a caminhar até o ponto de ônibus. Fui contemplado! Que maravilha! Precisei desmarcar um compromisso e ficar em casa. Tive tempo para fazer demoradamente qualquer coisa que me dispusesse a arranjar. A chuva era de tal modo perfeita que sequer precisei fechar as janelas.

E então fiz um café demorado; peguei no alto do armário xícara e pires que raramente uso, por causa da delicadeza e do tempo que já circula pela família; servi a mim mesmo! Em uma mão um punhado de biscoitos de nata na outra o Sentimento do Mundo! Foi uma tarde inteira em que a chuva fechou a terra para mim.

Senti que podia reconstruir valores. E foi assim que determinei que as coisas mais importantes fossem o café quente na xícara de porcelana, os biscoitos de nata e o livro do Drummond!

Rafael Alvarenga
Escritor e professor de Filosofia
ninhodeletras.blogspot.com.br

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