Uma questão de princípios

Nessa tarde, cheia de sombra e vazia de chuva, tudo que quer a criança é brincar na areia. Pode ser na terra, na grama, na calçada, no barro. E se houver sol que apareça, pode ser sob a sombra da árvore, do telhado, do guarda-sol, de uma nuvem que passe sem pressa. A criança quer é brincar. E pode ser com a boneca, a bola, a caixa de fósforos vazia, as panelas limpas do armário da cozinha, as pedras soltas do caminho que vaza pelo gramado. Tudo que importa é a brincadeira. Nela há valor suficiente e o lucro e a inflação são contornos tolos que jamais interrompem as ações. E há ainda a imaginação que cola qualquer coisa que se possa quebrar, que inventa o que fazer e um motivo para rir até do riso.

A criança quer brincar e tomar banho não é um problema se no banho puder igualmente brincar. Também a noite que cai obrigando-a ao interior da casa não será um problema se no interior da casa puder igualmente brincar. E também a hora da cama não será um problema se na hora da cama puder igualmente – e sempre igualmente – brincar.

É tanto querer brincar que a criança esquece para trás o que a entretinha há cinco minutos. Não pode parar! E assim engata uma diversão na outra. Como deve ser difícil alimentar picos tão altos de felicidade, descoberta, aventura e importância. Entretanto a criança consegue. Ela supera a si mesma guiada pelo princípio de que tudo que quer é brincar; e assim atravessa o mundo, a rua, o quintal, a casa, o quarto e atrás de si deixa um surpreendente rastro de desordem.

Mas é que no fundo de seu ilustre coração está escrito: não se pode querer e fazer outra coisa senão brincar. É uma questão de princípios.

Rafael Alvarenga
Escritor e professor de Filosofia
ninhodeletras.blogspot.com.br

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