A felicidade na cidade pequena

Eu penso nas ruas que sustentaram minhas brincadeiras de infância. Nas lâmpadas que gritaram em mil pedaços denunciando minha falta de pontaria. E nos lugares mais inacessíveis que só passavam a existir depois da necessidade de ir buscar a bola, sem a qual por um breve instante todos descansariam. E vejam: descansar! Em certa fase da vida isso nada mais é senão perder um pedaço da existência. Não é à toa que crianças choram, esperneiam numa lamentação desesperada quando o sono lhes avisa que veio sem piedade.

Devia ser por isso que o Sr. Amaro punha uma cadeira de madeira em frente à bancada de frutas e legumes do seu comércio – que eu jamais consegui saber o que era. Parecia bar, parecia quitanda, parecia loja de tecidos, parecia mercearia – e cochilava sem se importar com o resto do mundo. Será que é uma compensação? Será que o viver cobra o sono negado na infância depois dos cinquenta?

Fosse como fosse não via nada de ruim. Pois o Sr. Amaro cochilava com felicidade. Da mesma maneira como as crianças resistiam ao sono também com felicidade. É possível que o que importe nessa vida seja a vivência de alguma felicidade. Os meninos não deixavam de jogar bola na rua. O Sr. Amaro não deixava de cochilar em frente à bancada de frutas e legumes. Ambos felizes e distraídos até a hora em que a minha falta de pontaria quebrara a lâmpada da quitando-bar-loja de tecidos-mercearia.

Acordou o Sr. Amaro, as crianças seguraram a bola e descansaram. Um instante universal de aborrecimento naquela cidade pequena, naquela rua pequena, naquela pequena gente cheia de felicidade.

Rafael Alvarenga
Escritor e professor de Filosofia
ninhodeletras.blogspot.com.br

Você pode gostar

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

O limite de tempo está esgotado. Recarregue CAPTCHA.