Lei federal pode promover exclusão de famílias que vivem no Irmã Dorothy

Nos últimos quatro anos, as famílias que vivem há anos em assentamentos passam por um drama desde que uma Medida Provisória editada pelo então presidente interino Michel Temer (MDB), posteriormente aprovada como lei, alterou a política de reforma agrária no país. Essa realidade também inclui mais de 50 famílias que vivem há 16 anos no assentamento Irmã Dorothy, em Quatis.

Editada no ano de 2016 como MP nº 759, e apelidada de “Lei da Grilagem (expressão utilizada no Brasil para a falsificação de documentos para, ilegalmente, tomar posse de terras devolutas ou de terceiros)”, a Lei nº 13.465 foi sancionada em julho de 2017. Entre as mudanças previstas, uma delas virou motivo de preocupação para as famílias do Irmã Dorothy. A nova lei agrária altera o processo de seleção das famílias Sem Terra, o que poderia gerar exclusões dentro do assentamento, uma vez que os novos critérios de escolhas para a regularização estabelecem um sistema de pontuação das famílias.

A coordenadora regional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Edneia Pinto, relata que em dezembro representantes do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) estiveram no local em dezembro do ano passado, causando preocupação entre os assentados. “Vieram falar que não reconheciam ninguém como morador. Algumas famílias ficaram tão apreensivas que foram embora ou alugaram casa na cidade com medo do que possa acontecer”, disse a coordenadora ao portal do MST.

A Lei nº 13.465, que “dispõe sobre a regularização fundiária rural e urbana, sobre a liquidação de créditos concedidos aos assentados da reforma agrária e sobre a regularização fundiária no âmbito da Amazônia Legal”, em seu artigo 19-A, diz que cabe ao Incra, observada a ordem de preferência a que se refere o artigo 19, classificar os candidatos a beneficiários do Programa Nacional de Reforma Agrária, segundo alguns critérios.

O primeiro dele é voltado para as famílias mais numerosas cujos membros se proponham a exercer a atividade agrícola na área objeto do projeto de assentamento; o segundo é para as famílias ou indivíduos que resida há mais tempo no Município em que se localize a área objeto do projeto de assentamento para o qual se destine a seleção, ou nos Municípios limítrofes. E o terceiro leva em conta famílias chefiadas por mulheres. O primeiro parágrafo ainda prevê que o “regulamento estabelecerá a pontuação a ser conferida aos candidatos de acordo com os critérios definidos por este artigo”.

Entretanto, o segundo critério é o que mais preocupa os assentados de Quatis, pois abre a oportunidade de famílias de municípios vizinhos também se candidatarem para o benefício. Ou seja, o que antigamente era exclusividade que quem viveu por anos será dividido com moradores de Barra Mansa, Resende, Porto Real, Valença e Passa Vinte/MG que forem selecionados, e isso obrigará a saída de algumas famílias que estão há anos no local.

– Esse edital vai ser em cima das regras da normativa e com sistema de pontuação. E dentre muitas coisas que podem prejudicar nosso povo, a primeira é que ele será aberto para toda região, qualquer um poderá se inscrever para concorrer a um lote aqui dentro. Temos muitas pessoas já idosas, que quando entraram há mais de 15 anos atrás tinham força de trabalho e hoje não mais, e até pessoas que perderam seus companheiros – Reitera Edneia.

Ela explica que “qualquer pessoa lá fora com menos idade e com mais pessoas na família com o sistema de pontuação passará na frente” de outras que já estavam assentadas há mais tempo. “Aqui dentro temos também bastantes pessoas solteiras, que não têm filhos. Temos muitas famílias que vieram de outros acampamentos que se desfizeram ao longo desses anos e que vieram se somar aqui no Dorothy, pessoas com até mais anos de luta embaixo de lona preta”.

A coordenadora relembra que três meses depois da visita do Incra, as mais de 50 famílias ainda estão bem fragilizadas e com medo. “Teve família que foi embora, muitas não queriam nem mais plantar. Em uma assembleia apontamos que agora mais do que nunca, precisamos sim plantar e mostrar o papel da reforma agrária popular, que aqui moramos e vivemos do nosso trabalho e damos uma função social para a terra”.

Desde a visita dos funcionários da autarquia federal responsável pela reforma agrária, nenhum representante retornou. Nem mesmo para a seleção das famílias assentadas.

– Foi através de uma visita do Incra no assentamento em dezembro que tomamos conhecimento da aplicação dele (do edital) aqui. Nós sabemos que ele será feito baseado nas normativas de 2019, como foi o edital em São Paulo. Mas cada edital é diferente do outro. O Incra falou que seria aplicado na segunda quinzena de janeiro e que já estava em fase de conclusão, mas depois dessa visita de dezembro ninguém voltou mais. Já estamos nos encaminhando para abril e nada dele. E a instabilidade das famílias só aumenta – completa Edneia.

Além das críticas à seleção proposta no edital, o MST também questiona outra mudança. Antigamente, os assentados podiam participar e supervisionar o processo de seleção, mas tiveram esse direito negado na lei aprovada. Ou seja, os produtores ficaram de “mãos atadas”, sem poder fazer nada contra o processo seletivo. E correndo o risco de procurar outros assentamentos ou mesmo abandonar o campo e enfrentar a dura vida nas cidades em caso de exclusão.

CRIADO HÁ MAIS DE 15 ANOS
O assentamento Irmã Dorothy surgiu no ano de 2004, ainda na condição de acampamento, depois que o Incra começou a verificar se a Fazenda da Pedra, localizada em Quatis, era um latifúndio improdutivo, fato comprovado em fevereiro de 2005. Sendo assim, recomenda sua desapropriação para fins de reforma agrária. Alguns meses depois, organizadas junto ao Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) e ao Sindicato de Trabalhadores Rurais de Barra Mansa, as primeiras famílias ocuparam a Fazenda da Pedra para pressionar pela criação do assentamento no local.

Em 19 de outubro de 2006 foi publicado o Decreto Presidencial que autorizava a desapropriação da Fazenda da Pedra. Ainda naquele mês, os procuradores do Incra entraram com a ação judicial de desapropriação. Durante nove longos anos, uma decisão judicial obrigou as famílias do Irmã Dorothy a permanecerem em uma pequena área correspondente a 2% do imóvel. O assentamento só foi criado oficialmente em setembro de 2015 e desde então nenhuma família foi cadastrada.

A equipe do jornal BEIRA-RIO fez contato com o Incra para obter informações sobre o processo de seleção dos assentados no Irmã Dorothy e acesso ao edital, mas até o momento não obteve resposta.

Foto: Arquivo Coletivo de Comunicação/MST-RJ

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