“Vermelho”

Pessoal, uma pausa em meio a tanta sandice, oficial ou não. Fecho a janela da realidade e divulgo essa semana um conto do meu livro lançado pela Amazon.com. Na verdade um e-book (Chico Buarque no olho mágico). Em breve sai impresso. ‘Vermelho’ é o título. Sandice só minha. Segue:

Vermelho

Os olhos vermelhos da enfermeira o hipnotizavam. Aqueles grandes globos raiados de sangue eram realçados pelo contraste com a pele muito branca. Opaca. Gostava de admirar. Sentia uma sensação de paz e uma leve satisfação.
A cor vermelha desde sempre o atraíra. E o momento inicial dessa quase obsessão, ocorrera certamente ainda na infância. Quando do primeiro contato com o sangue vivo. Não com o dele exatamente. Na lembrança, nenhum ferimento ou acidente que expusesse seu próprio sangue. A imagem mais remota vinha de um dia de sol forte num ‘Sete de Setembro’. Foi quando viu o sangue escorrendo do nariz de um colega de turma durante o desfile cívico. A exposição ao sol e o ar muito seco devem ter provocado a hemorragia. A cena o impressionara. Achou que a vida do colega se esvaia com o sangue.

Não demorou muito e outro impacto ocorreu. Dessa vez mais forte e no ambiente doméstico. Ele chegou a perder o sono depois da primeira vez que assistiu a empregada da família, dona Geni, matar uma galinha. Bateu-se noite adentro com a imagem da faca afiada passando lenta pelo pescoço latejante da ave, rompendo as artérias. Via o esguicho formando a poça vermelha coagulando no vinagre do prato branco de ágata. A cena em sua mente se repetia como num moto perpétuo. Ficou alguns dias distante da cozinha, perturbado com o que concluiu ser o processo da vida a extinguir-se no jorro do sangue. Pensava no colega da escola. As imagens e as conclusões se embaraçavam na mente frágil. Mas o fascínio o atraia e logo voltaria a frequentar a cozinha para presenciar a morte de muitas outras galinhas, frangos, patos. O mesmo ritual. A atração era aquela poça vermelha.

Ainda quando criança, outra matança o impressionara. A de um porco que engordava no chiqueiro para uma data apropriada. Essa data foi o casamento de uma prima. As crianças estavam proibidas de presenciar a morte do bicho. Mas impossível impedir que ouvissem. Um pavor. Só que não foi o grito assustador e lancinante do animal sendo sangrado que mexeu com seu íntimo. O que mais lhe chamou atenção foi ver a camisa do ‘seu’ Orcindo banhada de sangue. O velho era perito no ofício, mas daquela vez alguma coisa na rotina saíra do eixo. O matador também parecia surpreso com tanto sangue na roupa. Mesmo assim, sorria, aparentando satisfação pelo dever cumprido. E aquela imagem era mais um ingrediente para fazer ciranda na mente confusa do garoto.

Sensação mais dramática ainda experimentou certa vez quando chegou da escola e deparou com a irmã aos prantos correndo até a cozinha onde estavam sua mãe e dona Geni. A menina tinha uma mancha vermelha na roupa. Era sangue. Ela chorava assustada enquanto minha mãe e dona Geni demonstravam contentamento. ‘O que seria aquilo!?’. A irmã sangrava como uma galinha, como um porco! Por certo estava perdendo a vida! Por que aquele ar de satisfação da mãe? E a frase: “agora você já é mocinha, minha filha”, soou mais enigmática do que explicativa. Até porque a menina continuava chorando. Nunca conseguiria entender aquele fato, mas, com o passar dos dias sentiu-se aliviado ao constatar que a irmã continuava viva. Diferente da galinha. E do porco.

Seu desenvolvimento mental era lento e parecia piorar com o tempo. Não acompanhava a evolução dos colegas de classe e repetia o ano. À época de prestar o serviço militar ainda estava no ensino básico. Não serviu. Também não notava a vida mudar a sua volta, na sua pequena cidade. Não percebeu o grande êxodo das áreas rurais e as pessoas indo embora. O lugarejo se esvaziando. Mesmo o convívio com o sangue parecia mais distante desde que em casa passou-se a comprar frangos abatidos em aviários e não havia mais datas especiais para matança de porcos. E nem porcos.

Só voltou a se impressionar outra vez quando viu o sangue em tecnicolor nas telas do cinema. Era um filme de Drácula. Ficou paralisado ao ver na tela, o sangue escorrendo da boca saciada de Christopher Lee.

O dueto da vida com a morte envolvendo o sangue o intrigava e o atormentava. Alegria, tristeza, pavor, atração. As sensações se misturavam. Confundiam-se num torvelinho. O auge desse desconforto de polarização do bem e do mal explodiu em sua mente ao ver certa noite o pai encolerizado espancar aquela irmã mocinha. Ela chorava, mas certamente era mais por causa da violência do pai do que pelo sangue sangrado. Tinha outra vez sangue na história. E ela repetia gritando: “Ele vai casar, pai. Ele vai casar comigo”. Ao que o pai respondia enfurecido: “Você manchou o sangue da família, você desgraçou a sua vida e a nossa. Você morreu pra mim. Você morreu!!”. A mãe chorava num canto. Sua irmã manchara o sangue e morrera para o pai, mas ainda parecia viva para ele. Como explicar isso?! Ela não era a galinha, nem o porco, nem sangrara pelo nariz como o amigo da escola. Ela sangrara antes e sorriram. Sangrara agora e choravam? Apanhara do pai. Morrera em vida para o pai que teve o sangue manchado. Sangue que dessa vez ele nem viu. Pressentiu.

Por um bom tempo creditou-se a esse fato a viagem sem volta na qual ele embarcou, se transformando num eterno sonâmbulo. Caladão, mergulhado no lago escuro e profundo de seu universo particular. Não testemunhou a decadência definitiva do lugarejo. Sua terra natal. Não notou o fechamento do cinema e nem viu os tanques e caminhões com os soldados vasculhando as casas. Não viu amigos serem levados. Nem viu mais aquele amigo que sangrou pelo nariz. Também não viu o sangue da morte do vizinho toldar a calçada. Não se lembra de quando os pais faleceram e a irmã, casada, também deixou o vilarejo com marido e filho.

Os anos foram passando e ele no seu mutismo insondável. Das poucas vezes que conseguiu articular algumas frases, pediu que pintassem o teto do quarto de vermelho. Passava horas deitado a admirar. O fascínio. Geralmente exibia um leve ar de satisfação. Outras vezes um olhar inexpressivo, indecifrável. E até mesmo, uma vez ou outra, deixava transparecer uma leve expressão de pavor. É o morador mais antigo da velha casa de repouso. Um dos últimos. Certamente, sua única motivação na vida é imaginar que logo será o plantão daquela enfermeira de olhos vermelhos.

Recebe quinzenalmente uma visita. Sua única visita em anos. É dona Geni, já velhinha e arcada, que chega se arrastando. Ele não sabe quem é. Ela só veste branco.

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