ASSASSINO! (um conto de fadas)

O dia amanheceu diferente naquela manhã. O mesmo Sol, a mesma névoa encobrindo a aldeia e o mesmo canto dos passarinhos. Nada diferente. Mas um ‘não sei o que’ parecia dizer que havia algo destoante no ar. Talvez o fato de um ou mais galos cantarem um pouco mais tarde. Mas nem isso era tão diferente assim. Sempre há aqueles galos mais boêmios que por dormirem mais tarde, também detonam seu canto de despertador mais tarde. Não. Não era isso.

Foi quando dona Guilhermina caminhando para o Mercado Central com uma parte de sua produção de laticínios para comercializar, percebeu a primeira demonstração do quanto o dia que acabara de nascer, seria diferente. O grito saiu de algumas das inúmeras janelas das casas assobradadas do burgo: ASSASSINO! E não demorou, de outro ponto da rua repetiu-se: ASSASSINO! E de outra janela: ASSASSINO! E o grito foi multiplicando-se pela aldeia: ASSASSINO! ASSASSINO! ASSASSINO!

O grito era repetido a intervalos de um minuto, ou um pouco mais. Era como se uma espécie de praga auditiva estivesse contagiando as casas do burgo. Quando dona Guilhermina chegou ao Mercado Central da aldeia, as pessoas já comentavam o estranho fato, até, com uma dissimulada expressão de regozijo. Mas os comentários eram econômicos, quase monossilábicos: Ouviu? É! Ham! Sei não!

Mas logo o assunto das conversas retornou ao tema comum dos últimos tempos. O crescente número de mortes. O arauto havia informado ao alvorecer, que mais uma família fora devorada pelo monstro na noite passada. O número de vítimas já superava as quatro mil na região. A notícia era o suficiente para que as pessoas praticassem bem rapidamente o seu escambo de cada dia e retornassem às suas residências o mais rápido que pudessem.

Dona Guilhermina trocou seus queijos por legumes e farinha de trigo e voltou para casa. Pelo caminho os gritos aumentavam e a repetição agora obedecia a intervalos de trinta segundos, pouco mais. ASSASSINO! Os gritos iam despertando adesões e já parecia que um coral ocupava o alto das casas da principal artéria do burgo. Desafinado, mas firme: ASSASSINO! ASSASSINO! ASSASSINO!

Para pegar o fio da meada dessa história teremos que voltar a pelo menos, três meses atrás. Tudo começou quando um caçador assustado chegou ao palácio e pediu para falar com o burgomestre, Joiso Messinha. O caçador relatou que vira um filhote de dragão dormindo numa moita de feno, próximo ao acesso principal do burgo. Joiso Messinha desdenhou do caçador e o mandou retirar-se, pois tinha mais o que fazer e ainda disse ao assustado homem: “medo de um filhote! Um filhotinho? Ah! Vá se catar, homem!”. Até aí, nada demais e a reação do burgomestre foi repetida pelos arautos e o povo da cidade não deu bolas ao fato.

Uma semana depois um enviado do chefe de um burgo vizinho trouxe a notícia de que uma tragédia ocorrera por lá. Há pouco tempo um filhote de dragão fora visto pelas redondezas do tal burgo. Mais tarde o corpo estraçalhado de um camponês fora encontrado e soube-se que o tal filhote tinha crescido e que já aterrorizava a região. As mortes no campo aumentaram em grandes proporções, o dragão já era adulto e insaciável. O burgomestre de lá fechou a cidade para proteger sua gente. Todo o gado e outros animais que pastavam também foram abrigados nos celeiros. A ideia era matar o monstro de fome. Com o passar do tempo não foram mais vistos vestígios do tal dragão. Joiso Messinha não ligou para o aviso.

Voltando aos tempos atuais, o que está ocorrendo agora é que o dragão cresceu e vem acabando com a população do burgo. Muitas mortes e o bicho parece tão insaciável, quanto o que atacara o burgo vizinho. Os moradores temem ir ao campo, mas as mortes passaram a acontecer cada vez mais próximo à aldeia também. Joiso Messinha se restringia a chegar ao beiral de uma das torres da sua fortaleza e falar aos aldeões que “o bicho não é tão feio como se pinta”. Ou “as pessoas estão morrendo, e daí? A culpa é dos pastores que deixam suas vacas e ovelhas soltas. O bicho não é tão feroz assim não”.

O dragão estava cada vez mais perto, e os aldeões que acreditam cegamente no burgomestre e se arriscavam ao campo, eram devorados. Joiso Messinha já não fala ao povo. Alguns líderes da aldeia, com auxílio de pessoas influentes de burgos próximos resolveram denunciar Joiso Messinha à Corte Mundial de Justiça dos Burgos por crime contra a humanidade e simpatia por dragões, o que é inconstitucional. A notícia correu pelas esquinas da aldeia e os mais exaltados já então classificaram o burgomestre como assassino. “Mais de quatro mil mortos. Quatro mil famílias destruídas e ele nem liga, é um genocida” era o discurso corrente. E assim foi crescendo a antipatia e a repulsa da população pelo burgomestre. E os moradores cada vez mais assustados pelo perigo do dragão rondando a aldeia, quase não saiam de suas casas.

A história chega mais ou menos ao fim, no dia de hoje, quando se comemora o solstício de Inverno. A praça central, onde Joiso Messinha mandou erguer a tradicional fogueira, está vazia. O povo está em suas casas, assustado, mas com alguma esperança de que o genocida possa ser condenado e que o Imperador mande sua tropa para prendê-lo e matar o dragão. Enquanto isso não se dá, do alto de suas janelas eles saúdam do burgomestre e seu séquito que passam rumo à praça central. Batem panelas e entoam um coro uníssono e vibrante, no que são acompanhados por papagaios e outros animais que falam. E por dona Guilhermina: ASSASSINO! ASSASSINO! ASSASSINO!

Foto: Reprodução

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