A anti-poética

Começaram as obras aqui no condomínio. Para ser mais preciso os atos agora já se encontram na fase final. No entanto como minha casa é a última, somente hoje compreendo o incômodo cujo pretexto é a necessidade. O objetivo é instalar uma longa calha por toda extensão do telhado. Particularmente julguei a iniciativa extremamente anti-poética. Pois me era delicioso chegar a varanda nos dias de chuva e ver as gotas escorrendo reluzentes até a grama. A calha é uma barragem. Artificial. Mandona. Cheia de regras. Nela as gotas só podem caminhar de um jeito e em direção a um mesmo lugar. E aí eu pergunto a vocês, pode alguém escrever uma crônica ou poesia sobre as gotas da chuva que escorrem pela calha? Não pode. E por isso afirmo: é uma iniciativa extremamente anti-poética.

Mas quem em uma reunião de condomínio dará ouvidos a um argumento poético? No máximo encontrarei um sujeito a dizer que poesia não é argumento, posto que para sê-lo é necessário lógica, razão, precisão.

Por toda parte por onde ando encontro atitudes anti-poéticas. Eu compreendo que se as goteiras agredissem a calçada, respingassem na parede e entrassem pela porta aberta seria grande o incômodo. Mas não. As goteiras se suicidam na grama. Corajosas e felizes do seu destino. E depois, da grama nascem até flores pequenas e amarelas.

Eu não sei aonde querem chegar. Mas seja qual for o lugar, certamente algum síndico chamará outra vez esses rapazes agitados para instalar essa horrorosa calha marrom de ponta a ponta.

Foto: Jahmaica/Reprodução

Rafael Alvarenga
Escritor e professor de Filosofia
ninhodeletras.blogspot.com.br

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