O caso da mariposa de manchas amarelas

Foi num prédio grande, cheio de janelas e pessoas, tudo cinza. Onde uma mariposa apareceu na pilastra do corredor. Seu corpo cilíndrico deitado sobre o fio da quina não se cortava em dois porque suas patas se abriam para sustentá-lo. Assim, pousada, brincava com a lei: para ela a gravidade é uma norma que puxa para o lado; o chão da mariposa é o vertical da parede.

Já as cores da mariposa podem ser melhor compreendidas se pensarmos nas vacas holandesa que são, em geral, muito charmosas. Têm o corpo branco ao longo do qual se distribuem manchas pretas de uma forma tão exclusiva quanto as minhas ou as suas impressões digitais. Os desafio a encontrar duas vacas holandesas idênticas; não são aceitas aquelas das caixas de leite UHT. Onde essas vacas são brancas nossa mariposa é cinza; onde são pretas, na nossa mariposa é amarela.

Tudo era cinza! O prédio, as portas, os vidros e os sapatos sujos. E em meio ao cinza as manchas amarelas da mariposa pousada na quina da pilastra. E que amarelo! Se por um eclipse agora o dia se fizesse noite todo esse corredor seria iluminado por esse amarelejo forte e escandaloso.

Fiquei ao lado da mariposa; tremendo? Não. Desejando um cataclismo de filme hollywoodiano no qual eu seria salvo pelo amarelo. Como eu queria que ela falasse comigo! Não precisava tomar um café, ver jogo do Flamengo. Conversar um pouco já seria suficiente. Se dissesse sim batendo as asas uma vez e não batendo duas vezes, eu me encantaria e esforçaria, afinal, fazer boas perguntas não é tarefa fácil.

Mas foram as possibilidades do corredor que trouxeram a tragédia a passos largos. Primeiro fiquei ali de atalaia protegendo a mariposa. Depois fui invadido pelo êxtase quente daquela cor que iluminava a passagem. Então chamei, anunciei, trouxe gente, reuni o mundo civilizado e apresentei a mariposa de manchas amarelas. Muitos se calaram; outros fixaram os olhos na quina da parede onde o inseto repousava pacífico. Houve quem se encantasse, outros quiseram fotografar. Fiquei em silencio deixando o deleite falar.

Foi uma mulher de cabelos negros e longos quem trouxe a suspeita. Primeiro perguntou se ali próximo havia algum laboratório. Se faziam pesquisas e exames. Em seguida sugeriu uma gaiola aberta uma experiência perigosa. Radioativa. Dito isso a multidão se alterou. Houve afastamento, defesa, temeridade. Pensaram rápido em uma malfazeja ficção científica intitulada “O inferno das mariposas de manchas amarelas”. Então um sujeito atarracado e calvo quis ser o herói abrindo passagem rumo ao inseto. Coloquei-me entre esse salvador da pátria e a mariposa. Segurei-o, gritei, mostrei os dentes. A mariposa – talvez tentando se comunicar mexeu também os dentes -.

Mas o sujeito inflamou a multidão e eu não sei que loja de calçados os patrocinou a ponto de surgirem todos empunhando sandálias de borracha. Consegui segurar dois dos agressores e percebendo a ineficiência de meus braços bradei “Voe, Voe!”, mas a mariposa não entendeu e a multidão riu alto, macabra antes de esmigalhar o amarelo do qual sobrou apenas uma gosmenta sujeira escorrendo pela quina da pilastra até o chão.

Incrível como tudo voltou à normalidade feia e cinza. E a multidão se dispersou, senão alegre, satisfeita por sentir-se novamente protegida.

Rafael Alvarenga
Escritor e professor de Filosofia
ninhodeletras.blogspot.com.br

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