Morro dum dia

Primeiro era uma casa e um quintal com um poço. Por dentro casa oca de tão pouca coisa. Por fora a brancura aguada da cal. A família era grande e podia plantar um mundo, pois ninguém morava pelos lados. Mas naquele chão duro, cada ponta de pedra era o túmulo das sementes. Foram se indo. Ficaram os mais velhos que o tempo acabou comendo.

Foi e foi e da casa sobrou uma ruína. Cresceu e cresceu o mato que no quintal venceu. O muro abandonou as divisões e caiu. Escama de cobra, pena de canário, pedra de chão, espinho de planta, reboco caiado; semente, fuligem e chuva. O tempo fez desenho na terra e quem passava longe já dava até nome para a montanha que crescia. Morro dum dia. Onde tudo caiu de um jeito de casa destruída. E cresceu doutro jeito, de morro construído.

Os mais velhos todos já tinham morrido. Só passava por ali quem viera depois do morro. E é isso que faz as pessoas acreditarem que certas coisas estiveram ali, desde sempre, imóveis e benditas. Morro dum dia começou num dia em que uma casa perdeu toda sua vida.

Sei que esse morro ganhou corpo e peso, mas como nada dura para sempre chegou o homem de volta. Agora outro homem e tempo trazendo debaixo do braço um punhado de máquinas. Topografia, terraplanagem, aterro, perfuração, dinamite. Palavras escritas na lápide do morro que morreu.

Agora o lugar é fazenda e nem a coruja escapa do segurança que para todos os intrusos lê com firmeza os dizeres da placa amarela pendurada no portão “Identifique-se. Área restrita.”.

Rafael Alvarenga
Escritor e professor de Filosofia
ninhodeletras.blogspot.com.br

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