Eu poderia dizer

O café, o bolo de banana de canela, a manhã silenciosa, a janela aberta para o verde da montanha, o sol nascendo, os papa-capins cantando, a horta sorridente, a chuva da noite de ontem, as goiabas maduras, o botão de rosa se abrindo, a flor do maracujazeiro e o cobertor de pólen nas costas do mamangaba.

É com isso que se faz uma crônica, eu poderia dizer. E assim exaltaria a calmaria bucólica dos ares do campo, como sendo o último tesouro desse mundo.

A altura dos prédios. A ordem e a desordem dos cruzamentos de asfalto. A árvore seca espremida em um canteiro sujo. O mendigo. A moça apreensiva sobre o selim da bicicleta azul. O lixo na calçada. O casal que reclama dos preços altos. A senhora vendendo empada. O gato lambendo papelão molhado.

É com isso que se faz uma crônica, eu poderia dizer. E assim exaltaria a mixórdia encardida da atmosfera da cidade, como sendo um tesouro de inspiração infinita nesse mundo.

O homem usando roupas sintéticas procura frutas orgânicas. A moça que estuda relações internacionais vai acampar na serra mais próxima. Na lavanderia do apartamento o casal construiu horta suspensa. Na roça o senhor espera o ônibus que o levará a cidade. A menina usa o celular para ver as fotos das sofisticadas moças que passeiam pela avenida. A novela faz a senhora sonhar com um microondas. E o menino quer os brinquedos de controle remoto anunciados no comercial.

É com isso que se faz uma crônica, eu poderia dizer. Pois a crônica é inventada, assim como a vida de cada um em cada lugar.

Rafael Alvarenga
Escritor e professor de Filosofia
ninhodeletras.blogspot.com.br

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