Atrás dos cadeados

No começo da manhã silenciosa existia já um sol amarelo. Mas o ar era ainda grosso e frio. De modo que quando se acumulava sobre as coisas pesava; depois ia escorrendo, pingando e marcando o chão. Parecia uma espécie de combate. O frio vestido de sereno esforçando-se por manter seu reinado matutino versus o sol que raiando insurgia contra qualquer tentativa de hegemonia.

Em meio a isso, eu procurava andar pelas calçadas, ainda que a hora me oferecesse as ruas inteiras com exclusividade. Devia ser porque sempre acreditei que as calçadas fossem mais hospitaleiras. Acho que o mundo inteiro dormia trancado atrás dos cadeados. Eu podia até ir andando devagar e bisbilhotar por entre as grades dos portões. Não somos mais indiscretos porque andamos muito mais pelo meio do dia do que pelas primeiras horas dele.

Fui andando. E como podia ver o que quisesse desapeguei de minha própria curiosidade. No entanto, eis que logo à frente olho por entre as barras de ferro de um portão e me deparo com o olhar arregalado de um cachorro. Sua cor branca e amarela, os olhos esclarecidos. Assustei-me. Dei um passo para trás. Esperei os latidos estridentes. O alvoroço. Não veio nada disso. Ele ficou parado me olhando sem dissimulação. Fiquei constrangido, pois ele não reagiu da forma como eu esperava. Além disso, naquele instante, ele tinha a calçada inteira com exclusividade. E parecia poder não ser cão por um momento.

É, ele podia até bisbilhotar por entre as grades de minhas ideias pré fabricadas e ver que eu também ainda cochilava atrás de muitos cadeados.

Rafael Alvarenga
Escritor e professor de Filosofia
ninhodeletras.blogspot.com.br

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