Proteção ao doutor

Foi amanhecendo o dia e a casa continuava rodeada de vigias. Até na cerca na beira da estrada, que por hora ganhara uma fiada a mais de arame farpado, tinha gente de arma em punho. Alguns proseavam solto rindo de casos distantes acontecidos com um sujeito manco ou traído. Outros arrumavam assunto porque o cansaço lhes abatia como um golpe forte de enxada.  Não dava para saber se algum deles pensava com dúvida naquilo que fazia.

Dentro da casa, cuja sala era maior que a meia-água de qualquer desses pobres vigias, o doutor ainda dormia. Dava para ouvir cá de fora o ronco alto de sua tranquilidade. Na cozinha os empregados preparavam o desjejum. Frutas, pães, queijos, cafés, leites, geleias. Tudo no plural. O doutor tinha empregado para cuidar da roupa, dos sapatos, dos cabelos, das unhas, dos filhos, dos jardins, das fossas. Diziam até que para cuidar da esposa tinha empregado, mas sobre isso o doutor proibia qualquer um de dizer, pois sentia um desconforto.

Do lado de fora da casa, dentro em breve, aconteceria a troca de turno dos vigias. Nada que merecesse a apreciação. Não havia qualquer cerimônia. Entretanto o momento interessava aos rebeldes. Diga-se de passagem que a menor das brechas lhes interessava. Mas eram tantos vigias e cercas com fiadas novas de arame farpado e cachorros-vigias que o doutor continuava assinando papeis e deliberando sobre a nova prataria da casa.

Subiu um cheiro de café fresco. Os vigias aguaram. Espiaram pela janela da cozinha, porém as cozinheiras avisaram que o doutor ordenara distribuir o café só depois que ele mesmo o saboreasse. Teve um que pensou: Mas ele sequer saíra do quarto.

Era assim. Sequer o doutor saíra do quarto. E quando saísse sequer daria bom dia àqueles que o guardavam o sono e as regalias. Pois sabia que só assim continuaria sendo doutor e os outros meros vigias.

Rafael Alvarenga
Escritor e professor de Filosofia
ninhodeletras.blogspot.com.br

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