O que me tem

Meu endereço me tem. Em número, rua e CEP. Mas graças a Deus não me tem em complemento. Meus sapatos me têm também. E isso não é pelo propósito de nenhuma rima. Me têm em número, mas creio que o sapato direito me tem o pé maior. Meu chapéu me tem na sombra. Dorme sob minha cabeça. Sabe que não fugirei, até porque a primavera parece verão. Minhas calças me têm pela cintura 38. Nunca soube que medida é essa. 38 o que? Admito ter certo receio de perguntar a alguém. Sinto um receio de que descobrirei algo indiscreto sobre mim mesmo.

Meu trabalho me tem. Me tem até suar e querer ir embora. Meu dinheiro me tem. Me tem em prestações suaves, porém eternas. Até o ar que deu no cano do chuveiro me tem. Me tem parado olhando para cima sem saber o que fazer. Minha horta me tem e me cobra sobre mim mesmo e a rega. Meus cachorros me têm. E me esperam ao longo da cerca me perguntando por que atrasei a crônica nesta quinta-feira. Meus vizinhos me têm pelos meus barulhos e gemidos; por minhas luzes acesas e programas de televisão.

Meus contratos me têm porque tem minha palavra. E até minha palavra me tem quando a dou em qualquer mercearia. Minha crônica, ah ela também é possessiva, e me tem linha a linha até a última hora ou folha. Até esse café me tem. Me tem pensando que na verdade nada eu tenho; eu é que sou das coisas.

Rafael Alvarenga
Escritor e professor de Filosofia
ninhodeletras.blogspot.com.br

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