Surpresa viva

Há cinco dias deixaram na porta de nossa casa uma caixa de papelão ecoando um gemido de filhote de bicho. A curiosidade – e a necessidade – fizeram nossos olhos entrar de imediato no fundo daquela chorosa caixa acústica. Que bom serem dois filhotes de cachorro. Não porque quiséssemos adotá-los, afinal, o quintal já adotara um há ano e meio. Acontecia, creio, que sendo cachorros choravam de fome. Não tinham qualquer receio sobre a morte, pois afirmam certos filósofos que só os seres humanos sabem que vão morrer. Ora, motivo suficiente para acabrunhar esta espécie.

Bem, não podíamos ignorar o caso. Impossível entrar, tomar banho, jantar, ler uma crônica do Rubem Braga e em seguida, ser enfeitiçado tranquilamente pelo sono. Os cachorros estavam ali e seu lamento reverberava desconsiderando obstáculos. Então os alojamos no banheiro externo. Tudo bem, era caso de amanhã leva-los a uma ONG que cuidasse filantropicamente desse tipo de fato.

Mas, se não bastasse o trambulador de cambio do carro ter quebrado neste mesmo dia, também naquela ONG não havia mais espaço para novos filhotes abandonados, me disse a moça ao telefone com sincero pesar. Não tinha como leva-los e tampouco para onde. Além disso, o fato de julgar a ação de alguém como miserável me impedia de sequer pensar em fazer o mesmo. De modo que não colocaria os filhotes em uma caixa de papelão na porta de alguém durante a noite.

Cedemos, encontramos um lar para um deles e resolvemos ficar com o outro que não era o mais forte, o mais bonito ou corajoso. Escolha que não fora fruto de caridade ou de qualquer saber. É que nós seres humanos nem sempre sabemos sobre aquilo que fazemos

Rafael Alvarenga
Escritor e professor de Filosofia
ninhodeletras.blogspot.com.br

Você pode gostar

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

O limite de tempo está esgotado. Recarregue CAPTCHA.