Tudo para ser crônica

Tudo fiz essa semana para atrair a crônica, mas ela insistiu em fugir. Caminhei pela Ponte Velha em Resende olhando as montanhas e o rio Paraíba. Utilizei os caminhos mais longos para chegar a algum destino fictício; analisei os casais decompondo seus gestos e desencontros; fiquei a ouvir as vontades dos filhos que as mães, cada qual a seu modo, fazia ou desfazia; procurei nos jornais e nos jornaleiros, nos jardins e nos jardineiros; bebi café em padarias, subi em brinquedos giratórios em um parque de diversões. E quando voltava para o papel me sentia tal como o papel em branco.

Passei a revisitar fotografias antigas e encontrei fitas cassetes de bandas que não ouço mais. Fui ao caderno de receitas e senti na boca os biscoitos de nata e os bolos de fubá. Procurei em gavetas e em envelopes; em cadernetas e em canhotos de talões de cheque. Não encontrei crônica alguma, mas claro, aproveitei para me desfazer de muita coisa.

Finalmente tomei banho, fiz a barba e me sentei para escrever. Porque a hora me estrangulava e agora seria a crônica ou a morte! Pobre entusiasmo. Não veio a crônica tampouco a morte. E ficamos eu e o papel em branco mais uma vez. Estava silenciado. Jamais precisara de tanto para uma crônica. Jamais precisara de tantos objetos, dias, passeios e operações para uma única crônica. Mas a vida do cronista possui variáveis que ele não doma. E por isso cada crônica pede um trabalho específico. Pode ser o instante em que o sabiá pousa no portão. E daí segue um texto crescendo feito braquiária no verão. Mas também há os que necessitam de mais mão de obra. De mais trabalho. De mais palavras. Dos cinco sentidos juntos. De tudo. De Tudo para ser crônica.

Rafael Alvarenga
Escritor e professor de Filosofia
ninhodeletras.blogspot.com.br

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